segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Entrevista: Daniel Melim

Decidimos interromper a abordagem dos atores sociais de Goiânia por acreditarmos que a influência dos métodos ultrapassa as fronteiras. Acreditamos em ações como as que serão descritas a seguir, e esperamos que essas palavras inspirem para a manutenção de um social autônomo. 
Daniel Melim é mais um exemplo de persistência e inquietude criativa acima de qualquer adversidade local ou temporal. Radicado no punk e imortalizado nas paredes do ABC paulista, Melim mistura as vivências de ex metalúrgico à pedagogia do "fazer para viver", contribuindo para a comunidade através de projetos inclusivos enquanto arte-educador. Sobre isso e outras tantas ações desenvolvidas em sua comunidade, ssegue uma entrevista feita por e mail com o artista. 




01. Você vem do ABC, região de predominância operária. De que forma as suas experiências locais - vivência na metalurgia, envolvimento com as lutas sindicais - influenciam na sua percepção e expressão de arte? 

Ainda vivo aqui na região. Desde muito cedo acompanhei de perto essa movimentação – meu pai trabalhava em uma montadora, meu tio era frente de greve, minha mãe professora; eu ia com ela nas greves. Mais tarde fui estudar em escola técnica, onde me formei como Técnico em Mecânica e trabalhei alguns anos prestando serviço em diversas empresas da região e Grande São Paulo. Isso tudo foi muito importante para minha formação social e política. Tudo isso de alguma forma aparece no meu trabalho, mesmo que não panfletário, mas está inserido de um jeito que talvez nem eu ainda entenda bem. Em horas com certeza esta mais visível, talvez na rigidez das faixas verticais, no desenho técnico, nos próprios temas. Mas tudo isso ainda é parte de mim e é meio difícil me afastar e ter uma visão mais global, de como interfere ou influencia.

02. O que veio primeiro pra você, o punk ou a arte? Consegue fundir os dois pontos numa coisa só ou as enxerga de forma separada?

O punk me fez entender como eu poderia desenvolver meu trabalho de forma mais autônoma, criar sem base numa escola definida, sem grana, com poucos recursos e mesmo assim fazer acontecer. A arte veio antes. Muito novo eu já desenhava, ajudava minha mãe a criar impressões em mimeógrafo com ilustrações para a turma dela, jornal da escola primária, enfim... Conheci o punk na adolescência, a partir do skate. Na década de 90 a cena aqui era forte de banda, e mesmo com o mercado do skate em baixa, tanto aqui como em outros locais da cidade o skate tava na rua, nos restos de pistas, e com isso veio toda a cultura junto – música, atitude, arte.



03. Fala um pouco sobre o Projeto Jardim Limpão. Também queria saber quais os efeitos positivos - receptividade, mudanças observadas - e os nem tão positivos assim nessa sua tentativa de inclusão e "democratização" artística. 

Depois de um tempo como Técnico em Mecânica resolvi mudar os rumos da minha vida. Decidi fazer arte-educação. Quando comecei a faculdade ainda trabalhava na firma, pra poder bancar parte dos estudos. Mesmo ainda estudando comecei a trabalhar com arte-educação em projetos sociais, ONGs e redes municipais. Mas sempre fora de São Bernardo.
Fui pegando muita experiência e aprendendo muito. Até o ponto que minha ideologia já não batia com os locais que trabalhava e também já estava trabalhando com pintura, com outra renda, e decidi me juntar com dois amigos que já desenvolviam um projeto de capoeira angola na quebrada, o Angoleiros Sim Sinhô. Os conheço desde moleque, sempre conversávamos muito sobre eu desenvolver alguma coisa no bairro, mas nunca rolava. Ate que resolvi começar com o Graffiti e pintar as vielas da quebrada. No primeiro juntou uma galera, desde criança até os pais. No primeiro momento estranharam... “Pintar isso, pra que? Por que? De graça?” Mas a molecada queria fazer parte daquilo, que era novo no bairro. Nesse momento entendi que ali o era inicio do projeto, que poderia trampar com os amigos, Vanderlei Viana e Fabio Mendonça, e aplicar tudo que aprendi ao longo dos anos como arte-educador.
Eu consegui ter controle do processo pra no final sair um mural bacana, mas consegui que todas as crianças, de alguma forma, pintassem juntas. Assim como também usar o spray, preencher de látex, Estêncil. Isso em 2006. Em 2007 lancei por conta própria um catálogo com essa experiência.
Bom, o volume de crianças foi aumentando e em 2008 comecei a usar o espaço da Associação de Bairro para ministrar oficinas de artes visuais para a comunidade, numa forma de organizar melhor e apresentar um pouco mais de conteúdo. Os Graffitis continuaram. No decorrer dos anos consegui trazer artistas para pintar no bairro como Tinho, Ciro, Sapo, Meduza e Otito, Cena7, Gafi... Em 2010, ganhamos um prêmio onde consegui desenvolver de forma mais profissional o projeto e lançar um segundo catálogo.
É difícil mensurar os resultados, mas conseguimos virar referência, o que por um lado é bom, mas por outro é bem difícil. Não tínhamos fôlego para atender as demandas, que já fugiam de ser culturais. Políticos cresciam os olhos e era um embate difícil. Numa forma geral, os jovens daqui melhoraram seu convívio social de forma brusca e caíram bastante os índices de mortes violentas no bairro. Mas o lance mais legal é que os próprios moradores viram que era possível se organizar e lutar por melhorias no bairro. Ano passado se instaurou uma Associação de Amigos de Bairro, efetiva que realmente está lutando por melhorias; entenderam que a ação direta pode ser uma ferramenta de melhoria estrutural e social. Com isso também fechei um ciclo com o projeto, porque minha ideia nunca foi de ser um curso profissionalizante, mas oficinas de mudança e conscientização social e política através da arte. “Se esses moleques podem organizar tudo isso, porque nós não podemos?”
Continuo em parceria com a Capoeira, mas estamos agindo de outras formas e reformulando as ações para o segundo passo.



04. Confeccionar as máscaras de estêncil requer uma certa paciência e dedicação que muitos não possuem e então preferem fazer sua produção a mão livre. Existe um motivo em especial para a escolha do estêncil e não de outra técnica?

Acho que Estêncil é uma questão de gosto, porque tem que ter uma super paciência para fazer a mão livre. Quando comecei a fazer Graffiti eu fazia a mão livre e conseguir o traço certo numa época que não havia Fatcap, NY e tudo isso, era foda. Mas o Estêncil veio pra mim primeiro, na pista de skate de São Bernardo. Na época era toda pintada com Estêncil, eu olhava e não entendia como era feito, mas ali foi a minha primeira referencia de Graffiti. Fiz ate uns Estêncils bem pequenos na época, tipo A4, folha de sulfite, mas não conseguia criar num tamanho grande. Depois de alguns anos encontrei uma galera no bairro que já fazia uns rabiscos, e aí acabamos nos juntando e criando a Ducontra Crew, com a proposta de fazer algo diferente e oposto do que se fazia normalmente. Foi aí que pensei num estilo mais original e resolvi resgatar a técnica do Estêncil. Na época poucas pessoas, além da turma de 80, desenvolviam isso. Juntei as lembranças das pistas, poucos Estêncils que tinha cortado e comecei a juntar com Free Hand, látex escorrido, sujeira. Aí percebi que estava conseguindo imprimir um estilo e ao mesmo tempo criar painéis com outros artistas em tamanhos legais e principalmente poder recriar a técnica que vi nos muros quando moleque.

05. Acompanho seu trabalho a bastante tempo e muitas vezes eu vejo que você realiza graffitis em locais abandonados, de difícil acesso ou longe das grandes vias. Para você qual é o grau de importância entre seu trabalho ser visto ao vivo e o registro final através da fotografia e divulgação na web?

Pra mim os locais abandonados têm a questão estética, que já fornecem uma imensa opção de texturas e formas que acrescentam muito para o meu trabalho. Mas também tem o lado de poder ficar sozinho, pensar, experimentar, além de explorar esses espaços.



06. Tem trabalhado com o que ultimamente? Existe algum projeto em andamento? De resto, agradecemos e pode ficar à vontade pra falar o que quiser.

Eu trabalho bastante, difícil eu ficar parado. Aqui, se não tem projeto a gente cria.
No geral há muitos projetos, mas como você deve saber, nem todos acontecem, uns dependem de terceiros, uma grana extra, e mesmo tentando desenvolver projetos de forma autônoma, através do autofinanciamento, com a grana da própria arte, nem tudo dá muito certo. Em breve começo um novo mural no ABC, e em setembro vou apresentar algumas novas pinturas na Galeria Choque Cultural.  De resto, prefiro falar quando tiver certeza mesmo.
Valeu mesmo pelo convite, uma grande satisfação. Obrigado!




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